5 November 2008

A Ferver, de Bill Buford é o máximo


Comecei a ler o livro há cerca de uma semana e tenho adorado e saboreado cada palavra. é do melhor! Vale mesmo a pena. Aqui fica um excerto do livro. O autor foi a Itália para aprender a verdadeira arte de ser talhante e cortar a carne. É longo mas vale a pena. Enjoy!
“[...] O olhar fixo de Dario [Cecchini, um talhante], que Filippo [Masini] evitava, era intenso e cheio de raiva. «Por que é que, em nome dos meus testículos», disse ele finalmente, numa voz baixa e controlada, «está este prato no menu?»
Filippo relanceou com indiferença na direcção de Dario, «Que porra estás tu para aí a fazer?» (Que cazzo dici?), perguntou com ligeireza, prosseguindo a linha de metáforas genitais que tão bem caracterizam as trocas de palavras dos machos toscanos.
«Ó meu grande cara de cu» disse Dario sonoramente, «porque é que isto está no teu menu?» Apontava para o carpaccio de ganso. «Carpaccio di oca?!!»
[...]
«Oh, Dario, isso aparece todos os anos no menu» disse Filippo, que, no entanto, e a despeito dos seus esforços para fingir que nada daquilo tinha importância, não conseguia parar de olhar por cima do ombro, não fosse dar-se o caso de o grupo do aniversário estar a assistir à humilhação.
[...]
«Os clientes habituais esperam que haja.» [...] «Ficariam desapontados se não pudessem pedir os seus pratos favoritos.»
[...]
«Filippo, este prato é de Friuli. Friuli é no Norte. Ao pé da Croácia.» [...] «E tu, o que és? A Disneylândia? Não há gansos na Toscana. Tu tens uma vista panorâmica. Quantos gansos avistaste esta noite? Isto é comida inventada. Como a fusão. Fusão toscana inventada.» Atirou com o menu ao chão. «OooooooOOO-KA!»
Filippo apanhou o menu e recolocou-o na mesa. [...]
Dario tornou a atirá-lo ao chão.
Filippo tornou a apanhá-lo. Foi um momento delicado em termos de diplomacia. Filippo recebera o chefe da cidade no seu restaurante mas este queria dar cabo dele. «Dario, Dario, Dario» disse ele, suplicantemente, dando umas pancadinhas na cabeça de Dario com o menu, umas pancadinhas afectuosas. Esperando uma reacção muito mais agressiva, Dario vacilou e Filippo, agarrando a oportunidade, deu-lhe mais uma pancadinha: e depois outra vez – com mais força. E depois, perdendo ligeiramente o controlo, começou a bater com tanta força e tão depressa que Dario teve de levantar os braços para se defender dos golpes.
Fora alcançada uma trégua: batendo irracionalmente na cabeça de Dario com o menu, Filippo fora de alguma forma capaz de o persuadir de que se estava a comportar irracionalmente. [...] Filippo conseguiu, por fim, obter o nosso pedido: dois quilogramas e meio de Bistecca da Gabriella, que Dario recomendou «muito mal passada, [...]»
Aliviado, Filippo iniciou os rituais do pedido da refeição, tal como se estivesse a servir uma mesa normal.
«Talvez um antipasto» perguntou à maneira dos restaurantes.
«Não!» respondeu Dario à maneira de Dario. «O quê, por exemplo? Carpaccio d’oca? Não.»
«Um primo?» insistiu Filippo, determinado.
«Não!»
«Talvez uma salada, umas verduras.»
« Não!»
«Vá lá, Dario» disse Ann Marie. Era a primeira vez que dizia alguma coisa. «Vamos comer uns espinafres.»
« Não!»
«Dario?»
«Não!»
[...]
Já passava da meia-noite e era hora de regressar a casa.
No parque de estacionamento, Dario dirigiu-se a mim com grande solenidade: «Um talhante nunca dorme. Um talhante trabalha a carne durante o dia e tem os divertimentos da carne à noite. Um verdadeiro talhante é um discípulo da carnalidade.»
[...]
Dario continuou: «Agora és um membro da confraria carnal dos talhantes. Estás a aprender a trabalhar a carne como um talhante. Tens agora de fazer amor como um talhante. Durante o resto da noite tens de desempenhar os sombrios actos da carnalidade, a carnalidade de um talhante. E depois vais levantar-te nas horas que antecedem a madrugada a cheirar a carnalidade e vais descarregar a carne do camião, como um talhante.»
Eu não sabia o que dizer. O meu patrão estava a dizer-me para fazer aquilo, para fazer a minha obrigação, e eu tinha agora de chegar a casa e fazer sexo. Já tinha sido um dia muito, muito comprido de carnalidades. O camião da carne chegava dentro de poucas horas. Parecia improvável que eu tivesse energia para mais carnalidades e fazer amor de talhante com a minha mulher durante o resto da noite e apresentar-me ao trabalho antes do amanhecer, sem dormir. Talvez no fim das contas eu não tivesse a constituição certa para este serviço. Mas fiz o melhor que pude. Não quis deixar mal a confraria.?"
Pág. 312-318. (Sextante Editores) (Tradução Fátima Andersen)

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